Meninas invisíveis

20/08/2014 06:12

Matéria publicada em 05 de abril de 2012

 

                                    STJ diz que não institucionalizou a prostituição infantil*                                                     

   

Maria do Rosário Nunes, 

ex-Ministra de Estado 

da Secretaria de Direitos Humanos (SDH).
 

2009 – O caso das crianças de MS chocou por sua brutalidade e perversidade. 

Deveria servir para o país olhar para o tema da prostituição infantil.

 

            Um enredo em dois atos e muitas omissões. Recentemente, o Brasil se indignou diante da TV, no horário nobre de uma noite de domingo, com uma mãe que, no interior do Pará, oferecia a filha a um repórter em troca de três latas de cerveja.O "show da vida" ali não tratava de uma ficção, mas de um flagrante da dura realidade vivida por milhares de meninas invisíveis que são exploradas sexualmente no breu de ruas, becos, botecos e esquinas do país.


            Na última semana, no conforto de suas salas climatizadas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), que havia absolvido dois réus acusados de exploração sexual de menores por entender que cliente ou usuário eventual de serviço oferecido por prostituta não se enquadra no crime previsto no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

            Aqui cabe uma pausa; vamos aos autos, senhores magistrados, digo, leitores. Uma das menores violentadas -que chamaremos de Virgínia- não nasceu nas ruas. Sua mãe ofereceu Virgínia ao amante, numa discutível prova de amor. Seviciada e humilhada, Virgínia fugiu de casa e, nas ruas, encontrou uma amiga, também menor, filha de uma trocadora de ônibus, que se iniciara na prostituição em troca de um vidro de xampu.


            A decisão do STJ, em si, já é absurda. A possibilidade de criar uma jurisprudência do "liberou geral" é, então, ultrajante. Ela viola os direitos humanos e avilta o espírito da própria lei.


            Afinal, os legisladores que criaram o Estatuto da Criança e do Adolescente não foram permissivos e deixaram claro que não há nenhuma distinção de classes sociais, muito menos atenuantes no caso de a violência sexual ser praticada contra crianças que já tenham sido violentadas anteriormente. Em nenhum lugar da lei está escrito que a ausência da virgindade pode se transformar numa atenuante para os que cometem os odiosos crimes sexuais.

 

              Voltando aos autos. Dois homens em um ponto de ônibus assediam e contratam Virgínia e a outra menor para um programa mediante o pagamento de 80 reais para cada uma. No motel, além de fazer sexo, espancam as garotas e as fotografam desnudas em poses pornográficas.


            O cioso tribunal manteve a condenação dos réus apenas por terem fotografado as menores -será que foi pela falta de registro profissional? Silenciou quanto ao fato de as meninas terem sido agredidas fisicamente, o que, por si só, já agrega traços de sadismo e violência que deveriam agravar a situação dos réus.


            Foi uma infeliz e retrógrada decisão jurídica baseada em um anacrônico Código Penal sexagenário que tipifica esse tipo de crime apenas contra os costumes. Ora, bastava aos ilustres magistrados considerar que a atual legislação - o ECA - já responde a isso e não ficar no cômodo aguardo da alteração do Título VI do Código Penal, paralisado no Senado Federal no aguardo de discussão e votação. Torpe e lamentável interpretação, optaram os magistrados.


            Quem se der ao trabalho de consultar o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI- que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no país vai se deparar com o caso acima citado e outras dezenas de flagrantes do flagelo documentado por meses de apuração em todos os Estados brasileiros.

 

            O caso das crianças matogrossenses choca pela sua brutalidade e perversidade. Deveria servir de exemplo para que o país voltasse os olhos para o tema da prostituição infantil, não pelo viés machista e sexista dos primórdios do século passado, mas pela busca de um arcabouço jurídico que garanta a igualdade entre os sexos e puna de forma rigorosa todos os crimes cometidos contra a dignidade humana, ainda mais quando as vítimas são crianças e adolescentes no desamparo de uma família esgarçada ou, no mais das vezes, não existente.


            São histórias de meninas invisíveis que tiveram seus instantes de esperança e luz ao contar seus dramas diante de congressistas, procuradores e representantes da sociedade civil.

 

              A decisão do STJ apaga essa luz e devolve ao breu, à insignificância e ao abandono jurídico essa legião de brasileiras ultrajadas e violentadas nas suas vidas. Crianças definitivamente marcadas em suas mentes, seus corpos e seus corações.

maria_do_rosario

*pedagoga, ex-ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Em 2009 (foto) presidiu a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e foi relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI- que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.   

 

STJ diz que não institucionalizou

a prostituição infantil

            O escritório de Direitos Humanos da ONU (Organização da Nações Unidas) na América do Sul criticou a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que inocentou um acusado de estuprar três meninas de 12 anos de idade. O Tribunal argumentou que as crianças já se dedicavam à prática de atividades sexuais. O MPF (Ministério Público Federal) entrou com recurso contra a decisão.

            É impensável que a vida sexual de uma criança possa ser usada para revogar seus direitos, disse Amerigo Incalcaterra, representante da ONU. A decisão do STJ abre um precedente perigoso e discrimina as vítimas com base em sua idade e gênero, acrescentou.

            Incalcaterra destacou que a decisão do STJ contradiz vários tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, incluindo a Convenção sobre os Direitos da Criança, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Ele enfatizou que todos os tribunais têm a obrigação jurídica de interpretar e aplicar esses tratados de direitos humanos.

            O representante comentou a preocupação da representação do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil sobre esta decisão, que põe em risco os progressos já realizados pelo País sobre o respeito aos direitos de crianças e adolescentes.

            Incalcaterra pediu às autoridades nacionais, incluindo o Poder Judiciário, que priorizem os interesses superiores da criança na tomada de decisões e lembrou a obrigação dos Estados de protegerem as crianças de todas as formas de violência, incluindo o abuso sexual.

            As diretrizes internacionais de direitos humanos estabelecem que a vida sexual de uma mulher não deve ser levada em consideração em julgamentos sobre seus direitos e proteções legais, incluindo a proteção contra o estupro. Além disso, de acordo com a jurisprudência internacional, os casos de abuso sexual não devem considerar a vida sexual da vítima para determinar a existência de um ataque, pois essa interpretação constitui uma discriminação baseada em gênero.

            Incalcaterra elogiou as declarações da SDH (Secretaria de Direitos Humanos) do Brasil, nas quais a Ministra Maria do Rosário disse que os direitos das crianças jamais podem ser relativizados; ela também criticou a decisão do STJ por significar impunidade para crimes dessa gravidade. O representante ofereceu ao Judiciário a assistência e cooperação do seu Escritório sobre as normas internacionais de direitos humanos.

            O STJ publicou nesta quarta-feira (11/4) nota de esclarecimentos à sociedade em relação à decisão que inocentou um homem da acusação de ter estuprado três meninas de 12 anos. A nota diz que o STJ não institucionalizou a prostituição infantil. O presidente do STJ, Ari Pargendler, disse em público que a decisão pode ser alterada.

            "A decisão não diz respeito à criminalização da prática de prostituição infantil, como prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no Código Penal após 2009. A decisão trata, de forma restrita e específica, da acusação de estupro ficto, em vista unicamente da ausência de violência real no ato", diz trecho da nota.

 

Repercussão negativa


            O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, manifestou-se contra decisão tomada na última terça (27/3) pela 3ª Seção do STJ, segundo a qual nem sempre o ato sexual com menores de 14 anos pode ser considerado estupro. Para Cardozo, as decisões da Corte têm de ser respeitadas, mesmo que se discorde delas. "Eu, como estudioso do direito, tenho uma posição contrária, mas o STJ deu essa decisão. Não sei se ela será mantida, se será definitiva. Aguardemos o resultado final", disse o ministro, após participar, no Tribunal, da abertura do Prêmio Innovare, destinado aos autores de iniciativas inovadoras no campo jurídico.


            "Entendemos que os Direitos Humanos de crianças e adolescentes jamais podem ser relativizados. Com essa sentença, um homem foi inocentado da acusação de estupro de três vulneráveis, o que na prática significa impunidade para um dos crimes mais graves cometidos contra a sociedade brasileira",disse a ministra Maria do Rosário. De acordo com a SDH a decisão abre um precedente que fragiliza pais, mães e todos aqueles que lutam para cuidar de crianças e adolescentes.

            A decisão pode banalizar a violência sexual contra crianças e adolescentes, de acordo com a secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves. Acho que além de banalizar, vai autorizar [a prática do crime]. O Judiciário brasileiro está autorizando estupradores a fazerem isso. Este é um elemento grave, disse a secretária.

 

            A ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) também se manifestou contrária a decisão. Segundo a entidade o entendimento é uma afronta ao princípio da proteção absoluta de crianças e adolescentes, garantido pela Constituição Federal. Na opinião do presidente da associação, o procurador regional da República Alexandre Caminho de Assis, a decisão é um salvo-conduto à exploração sexual. O tribunal pressupõe que uma menina de 12 anos estaria consciente da liberdade de seu corpo e, por isso, se prostitui. Isso é um absurdo, disse.            

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*Na visão do ((( Seja bem-vindo! ))) não há informação sem proveito, se dela pudermos extrair lições que valham para a Vida. Falamos às famílias, portanto a toda a sociedade que dela surge e se sustenta quando os pais dão a seus filhos e filhas a atenção e o apoio de que necessitam para bem conduzirem suas existências.